terça-feira, 31 de maio de 2022

Analise de Jurisprudência

 Acordão do Tribunal Administrativo Norte

 

Acordão de 9 de outubro de 2015- decurso interposto por particular contra a Direção Regional de Agricultura e Pescas do Centro e o Município de Albergaria-a-Velha.

 

Inicialmente, explicando de forma sucinta os conceitos abordados no acordão.

Nas palavras do Professor Diogo Freitas do Amaral [1], a definição de ato administrativo é a seguinte: "ato jurídico unilateral praticado, no exercício do poder administrativo, por um órgão da administração ou por outra entidade pública ou privada para tal habilitada por lei, e que traduz a decisão de um caso considerado pela administração, visando produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta”. Está relacionado com a condução voluntária produtora de efeitos jurídicos, ou seja, através da decisão da administração os sujeitos detentores de direitos e deveres estão “obrigados” a cumprir esta norma. Isso encontramos tutelado no art.148º do CPA. Enquanto o Professor Marcello Caetano refere ato administrativo como "conduta voluntária de um órgão de administração que, no exercício de um poder público e para prossecução de interesses postos por lei a seu cargo, produza efeitos jurídicos num caso concreto."[2]

 

Quanto a contestação de um ato, pode ser anulabilidade ou nulidade. Esse regime encontramos no art. 161º e 163º do CPA. Um ato nulo, é ineficaz ab initio, ou seja, não há a produção de qualquer efeito jurídico, independentemente da declaração de nulidade, a declaração judicial de nulidade assume a forma de declaração de nulidade e tem uma natureza meramente declarativa e a impugnação de um ato nulo não está  sujeita a um limite temporal (art.58º/1 CPTA e 162º do CPA).

Por sua vez, a anulabilidade é menos gravosa, se diferenciando da nulidade. Esse ato pode ser sempre eficaz, produzindo efeito jurídicos como se fosse valiso (163º/2 CPA), pode ser impugnado com um limite temporal (art.58/1 al. a e b do CPTA).


O acordão tem como objeto a atuação da administração pública, nomeadamente a Direção Regional de Agricultura e Pescas do Centro e o Município de Albergaria-a-velha, declarando então como nulo o ato administrativo o despacho do Diretor Regional de 27 de novembro de 2012 e também declara nulo os atos praticados pelo presidente da Câmara Municipal.


No presente acordão o particular alega dois pontos: o despacho da Direção Regional de Agricultura e Pescas do Centro, alega o recorrente, possuir uma inconstitucionalidade orgânica. Essa inconstitucionalidade se dá em termos orgânicos por se tratar de matéria de reserva da AR, precisando de norma habilitante e que no caso não houve. Assim, considera o ato administrativo nulo. Não obstante, diz que o ato administrativo praticado pelo Presidente da Câmara Municipal de Albergaria a Velha é também nulo, por se tratar de um ato de execução, mas que na realidade é inovatório, ou seja, independente, ou seja deveria ser impugnado.

 

O TAF posicionou-se de forma contrária a pretensão apresentada, considerando com base na jurisprudência e doutrina, que a atuação administrativa que o recorrente entendia inconstitucional não é nulo. E assim, nos termos do art.58ºnº1 alb do CPA, por ter essa natureza, deve cumprir um prazo para que haja impugnação- 3 meses- e assim, entendemos que o prazo tinha caducado.

 

O Professor Tiago Serrão analisa com base nos princípios constitucionais que os atos administrativos relaciona diretamente com a lei e não com a constituição, e assim posição da jurisprudência tem vindo a ser marcada pela tomada de posição desfavorável á nulidade do ato administrativo, baseando nesse pensamento do Professor. A jurisprudência no acórdão proferido a 29/03/2005 no processo nº158/2005 vem nos dizer que a constituição implica no conteúdo do ato e não no ato diretamente, e assim como esse acórdão, inúmeros outros vêm afirmar essa linha de raciocínio.

 

Entendendo a posição jurisprudencial e a doutrina, entendendo que a decisão desse acórdão em concreto segue essa linha de pensamento, entendemos que a Constituição não legitima atos administrativos, mas antes faz um juízo normativo dos mesmos, fazendo sentindo a posição tomada pelo presente tribunal. Neste caso, os factos ocorreram em dezembro de 2012 sendo que a impugnação é datada de agosto de 2013, pelo que a conclusão é de que os prazos já haviam sido caducados. Significa isto, que já não haveria a possibilidade de interpor uma ação de impugnação administrativa.


Para  o pedido feito, o ato administrativo deveria ter vīcio ou assumir um caráter inovatório que viesse alterar, modificar ou exceder a situação definida, e assim haveria lugar para impugnalidade deste tipo de atuação administrativa.

Por todos os motivos supramencionados, o Tribunal Central Administrativo Norte manteve a decisão do TAF, negando provimento ao recurso interposto pelo particular. Na nossa opnião, sendo o que mais faz sentido.



 



[1] Amaral, Freitas Diogo, Curso de Direito Administrativo volume II, Almedina, 3ªedição, 2016 pág.197

[2] MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administartivo, vol.Im 10º edição/ p.428

Serrão, Tiago A nulidade do acto inconstitucional, Estudos de Direito Público, Coleção PLMJ, Coimbra Editora página 189





Mylla Purcinelli (61705)

Subturma 14

2º B

domingo, 29 de maio de 2022

Indispensabilidade dos princípios para a Administração Pública

 O procedimento administrativo que é definido como “a sequência juridicamente ordenada de atos e formalidades tendentes à preparação e exteriorização da prática de um ato da Administração ou à sua execução”,[1]  obedece a certos princípios fundamentais, inicialmente podemos falar do seu Caráter Documental, ou seja, o procedimento administrativo deve,  em regra assumir uma forma escrita, podendo esta ser em suporte eletrónico, como dispõe o artigo 64.º, nº1 do CPA, que exige ainda que seja feita menção a elementos essenciais como por exemplo a data do procedimento. Não obstante, a administração pública rege-se por uma Natureza Inquisitória (artigo 58.º CPA) -Contrariamente aos tribunais, a Administração é ativa, isto é, tem direito de iniciativa no que respeita à promoção da satisfação dos interesses públicos que são colocadas a seu cargo pela lei, não estando em regra condicionada pelas posições dos particulares. “Constituem importantes manifestações deste princípio as regras contidas nos artigos 115.º e 117.º do CPA.”2] 


No que toca os particulares, podemos falar da  Colaboração da Administração com os particulares, é necessária a colaboração permanente da administração pública com os particulares. Este princípio está consagrado no artigo 11.º do CPA. Apesar do apresentado no número 2 deste artigo, quando houver o dever jurídico da informação, a Administração é responsabilizada pela informação prestada independentemente de o ter feito ou não de forma escrita, devido ao princípio da responsabilidade das entidades públicas e da confiança nas relações com os particulares. Temos também o  Direito de informação dos particulares, presente no artigo 268º/1 da CRP, sendo que este estabelece  que os interessados no processo têm o direito a estarem informados sobre este ao longo de todo o procedimento administrativo. No caso da Administração se recusar a dar a informação necessária aos particulares, esta vai ser civilmente responsabilizada pelos danos causados. Este princípio encontra-se regulado ainda pelos artigos 61.º e 64.º CPA.


Junto a isso, temos a participação dos particulares na formação das decisões que lhes respeitem,presente no artigo 267º/5 da CRP e no artigo 12º do CPA. Este princípio manifesta-se sobre várias formas, entre elas: direito de audiência prévia, de formular sugestões de prestar informações à Administração. A Lei 83/95 de 31 de Agosto, regula o direito de participação popular.

 

Nesse âmbito, temos o Princípio da decisão, que encontra-se estabelecido no artigo 13º do CPA, sendo que este estabelece que a Administração deve pronunciar-se toda as vezes que é solicitada pelos particulares devendo também facilitar a proteção dos mesmos ou qualquer pessoa pública ou privada cuja posição jurídica esteja dependente de uma decisão procedimental da competência de um órgão administrativo em face a omissões administrativas ilegais. Além da Cooperação leal com a União Europeia (art.19º do CPA), explicado pela crescente participação da União Europeia no processo de decisão da Administração Nacional e pela participação de instituições e organismos da primeira em procedimentos administrativos nacionais. Assim, a Administração Nacional está vinculada a prestar informações que sejam solicitadas pela União Europeia, bem como apresentar propostas ou colaborar com a Administração Pública de outros estados.

 

Em síntese, entende-se por parte da doutrina e, até mesmo Jurisprudência, que os princípios da Administração Pública são essenciais para a compreensão e funcionamento da mesma. Nomeadamente, Professor Paulo Otero entende que os princípios pautam o procedimento da atividade administrativa, sendo o caminho que leva à decisão, pautando o conteúdo do próprio agir, a decisão final.



[1] Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo,volume II, 4ª edição, 2020, Almedina, Coimbra,pp 270.

[2] Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo,volume II, 4ª edição, 2020, Almedina, Coimbra,pp 279 - 280.






Mylla Meira Purcinelli
Subturma 14
nº61705

Uma viagem pela vida do Direito Administrativo- segunda sessão terapia

  

        Damos início à nossa segunda sessão de psicanálise. Após um primeiro tempo juntos e decorridos alguns dias, o paciente regressa. Analista e paciente juntos percorrem, mais uma vez, o caminho que será preciso desbravar, associam-se ideias e traz-se ao consciente as dificuldades sentidas, os medos, as defesas. O paciente experencia a possibilidade de se pensar num lugar seguro, junto e com o analista, na relação de "intimidade implícita partilhada", que ao contrário que a maioria das suas relações anteriores, se quer segura e conducente a um desenvolvimento saudável e a uma nova abertura para o mundo.                 Como nos ensina Coimbra de Matos:

“[...] Ensina-me a ser gente, sentir as minhas emoções, ter sentimentos, pensar os meus pensamentos, ter pensamento; ser sujeito, reconhecer-me como alguém em devir - com subjetividade, intencionalidade, projeto, esperança e entusiasmo.[1]

 

        É neste processo transformador e coconstruido, que terapeuta e paciente criam uma nova relação – o novo motor da cura analítica. A relação terapêutica desenvolve-se, assim, paralelamente à relação transferencial, caraterizada pela repetição de padrões antigos, saturados e conhecidos e abre novos horizontes e novas possibilidades para o sujeito se pensar.

Psicanalista- Faça favor, ponha-se à vontade.

Paciente (deita-se no divã, e procura uma posição confortável) - “Sabe esta sensação de estar deitado e de não a ver é algo estranha, sei que faz parte mas acho que ainda não me habituei.”

Psicanalista- “É natural que no início estranhe e há mesmo quem nunca se habitue e precise de estar frente a frente, vamos falando disso nas próximas sessões e logo me diz como se sente melhor.”

Paciente- “Por enquanto gostava de continuar assim, até porque a semana passada foi estranho no inicio mas depois nem mais me lembrei de tal coisa. Peço desculpa se falei demais mas soube-me bem desabafar. Há muito tempo que não revisitava o meu passado. Estes dias pensei nisso, se não andaria a evitar falar destas questões. Não sei se ainda se lembra do que lhe falei?”

Psicanalista – “Na sessão passada falou-me da sua infância e de como o paradigma perdido do ato administrativo no tempo do estado liberal o tinha influenciado na sua formação inicial. Como criança que se identificava ao pai, um estado com contradições intrínsecas, na busca da separação de poderes e na garantia de direitos mas que no fundo agia de forma autoritária. Fiquei a pensar, confesso-lhe, nesta sua fase em que executoriedade dizia respeito, fundamentalmente, ao tradicional privilégio de execução prévia e ao poder de os atos da administração serem executados coativamente por esta, aquando  da falta de cumprimento do particular e em quão perverso isso era, visto que nessa altura (séc. XIX) o seu fundamento encontrava-se na presunção de legalidade dos atos administrativos. Tem de ter sido algo confuso para si. Por um lado a defesa do Princípio da Legalidade, por outro a perversão do mesmo.”

Paciente – “A Dra. tem uma boa memória. Este tema da perversão do princípio da legalidade foi uma das minhas principais reflexões desde a nossa consulta. Debati-me como foi possível levar tanto tempo a perceber certas coisas. Na realidade até à revisão do CPA de 2015 as decisões da administração eram executórias por si próprias, o que significava que podiam ser impostas coercivamente pela administração aos particulares, sem sequer haver necessidade de recurso prévio aos tribunais. Nos nossos dias só há lugar à execução coerciva dos atos administrativos pela Administração nos casos previstos na lei (princípio da legalidade da execução) e em situações de urgente necessidade pública que tem de ser fundamentada (art.º. 176 CPA). Tirando estas exceções os atos só podem ser executados mediante decisão judicial  segundo o artigo 183 do CPA.

Foram muitos anos preso a esta incoerência, em que inclusive os atos eram, na sua maioria vistos como vinculativos, sendo a discricionariedade vista como uma espécie de liberdade…. Confesso que ao olhar para trás tenho dificuldade em perceber como isto era possível mas, a verdade é que foi assim. O princípio da legalidade, por exemplo, era entendido pelos liberais como um instrumento de defesa em face da administração, visto como terreno, uma espécie de direito de propriedade, e que, na verdade, ainda hoje tem as suas manifestações, com expressões que são usadas nos nossos dias. O Professor Freitas do Amaral ainda nos fala de reserva de lei e preferência de lei, por exemplo… Pequenos resquícios do trauma inicial dirá a doutora…”

Psicanalista – “Sabe que o medo da perda de controlo faz com que muitas vezes o ser humano, individualmente e em sociedade, aja de forma autoritária e repressiva, no fundo é uma defesa, uma forma de agir para colmatar as nossas falhas internas.”

Paciente – “Como diz Vasco Pereira da Silva, de quem já lhe falei, e que gosta muito de psicanálise,  sendo o grande responsável por esta minha  aventura consigo: ““o Contencioso Administrativo, muito mais do que «uma “invenção liberal”, determinada pelo princípio da separação de poderes», é «uma herança do Antigo Regime», ou, se se preferir, em linguagem psicanalítica, que a decisão de criação da justiça administrativa é determinada por causas profundas, que remontam a acontecimentos traumáticos passados.”[2]

Psicanalista- “Conheço bem o Professor Vasco Pereira da Silva um acérrimo defensor da psicanálise cultural…”

Paciente – “Sabe foi o Professor, uma verdadeira figura materna para mim, compreensivo e protetor, que introduziu em Portugal esta ideia de um controlo do poder discricionário limitado (e não livre como muitos autores defendiam), por um lado, pelo vínculo da competência e, por outro pelo vínculo do fim. O que me faz todo o sentido, já agora. Se não há norma de competência eu não posso atuar, sob pena de ilegalidade. Podendo ir mesmo mais longe, pois hoje reconhecemos que podem haver órgãos independentes que não estão integrados em nenhuma pessoa coletiva, mas têm competências. Se um destes órgãos pratica um ato que era competência de outro, temos outro tipo de ilegalidade, incompetência absoluta ou incompetência por falta de atribuições. Esta ilegalidade tanto se manifesta nos casos de vício de fim, por motivo de prossecução de fim de interesse público (diferente do legal) ou prossecução de um fim maioritariamente privado e como tal,  pode haver uma situação mais grave do ponto de vista jurídico.

Mas gostava de lhe falar de outra altura da minha vida. Viviam-se outros tempos e o papel do Estado alterou-se. Estaríamos em mais ou menos no início do século XX, por aí… O paradigma agora era o do Estado Social, muito diferente do anterior. Um Estado com uma administração prestadora e que trouxe necessariamente novos tipos de atos. Como se percebe, uma administração prestadora, na qual os seus atos distribuem bens ou serviços, atos favoráveis; praticam atos de natureza jurídica com conteúdo favorável ao particular. Assim, aquilo que a Administração fazia era utilizar o Direito como um fim para satisfazer necessidades coletivas, o que é diferente do que fazia o tribunal, em que o Direito era o fim da sua própria atividade. Antes para que um ato pudesse ser apreciado pelo Tribunal Administrativo tinha de ser definitivo. E de alguma maneira, explicitando este conceito, o Prof. Freitas do Amaral vai, no quadro da explicação deste regime jurídico, apelar à tripla definitividade, dizendo que não basta que o ato fosse definitivo: ele teria de ser definitivo por representar o fim do procedimento (o ato último do procedimento administrativo, igual a uma sentença); e ser o ato praticado por um órgão de topo, e isto vem explicar a manutenção, por muitos anos, da ideia do recurso hierárquico necessário, a ideia de que antes de ir a tribunal era preciso recorrer ao superior hierárquico e que sem isso o ato não seria impugnável; e, por último, a ideia da definitividade material, que era a ideia de definição, o ato definia o direito aplicado ao particular do caso concreto.

Psicanalista – “ essa parece-me uma mudança fulcral na sua vida, o meio que nos rodeia é fundamental no nosso crescimento e é muito natural que a sua evolução nos faça evoluir também.”

Paciente- “Nem imagina como… desde a forma como me defini, à forma como me organizei, Foi um longo caminho até ao momento de hoje. Aliás, se tivermos tempo ainda gostava de lhe falar um pouco desta fase da vida em que me encontro. Agora (estado pós-social) com o surgimento de novas ameaças à dignidade da pessoa humana no quadro do ambiente, das novas tecnologias e da informática, há novos direitos fundamentais, mas também há direitos procedimentais e processuais, que antes não existiam de todo. Com o estado pós social surgiram novos tipos de atos e estes aplicam-se a uma multiplicidade de destinatários, foi uma mudança radical. O próprio legislador, nos dias de hoje, precisa de partir de uma noção de ato administrativo suficientemente ampla e que compreenda as características de todos os tipos de atos.  Parece-me que foi isso que o legislador português quis quando escreveu o art. 148º CPA, de forma a dar um conceito de ato administrativo mais amplo e flexível, considerando “atos administrativos as decisões que, no exercício de poderes jurídico-administrativos, visem produzir efeitos jurídicos externos numa situação individual e concreta.”

Psicanalista – “Por hoje temos de ficar por aqui mas continuamos na próxima sessão”, o processo analítico leva tempo e é natural sentir que as sessões passam muito depressa pois há toda uma história de uma vida inteira para contar. Vemo-nos quarta como habitualmente.”

 



[1] Coimbra, de Matos A. (2007) Vária. Existo porque fui amado. 1. ed. Lisboa: Climepsi, 2007, p.160.

[2] Silva, V.P. D. (2022). O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise - Ensaio sobre as Ações no Novo Processo Administrativo (2nd Edição). Grupo Almedina p.23 (Portugal). https://ebooks.almedina.net/books/9789894002154


Bibliografia

Amaral, D. F. (2018). Curso de Direito Administrativo. Lisboa: Almedina.

Matos, A. C. (2007). Vária. Existo porque fui amado. Lisboa: Almedina.

Matos, A. C. (2016). Nova Relação. Climepsi.

Silva, V. P. (2016). Em Busca do Ato Administrativo Perdido (reimpressão 2021 ed.). Lisboa: Almedina.

Silva, V. P. (2021/2022). Aulas teóricas na Faculdade de direito de Lisboa.

Silva, V. P. (2022). O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Ensaio sobre as Acções no Novo Processo Administrativo. (2ª ed.). Almedina.

Código do Procedimento Administrativo, 2021 (2 ed.) AAFDL



     Clara Cymbron de Medeiros

     Aluna nº 64198

Invalidade dos atos administrativos e posição crítica do art. 161º, nº 2

 

Invalidade dos atos administrativos e posição crítica do art. 161º, nº 2

 

·        Validade dos atos administrativos – regimes da nulidade e da anulabilidade

São requisitos de validade dos atos administrativos todos aqueles que a lei imponha como condição para que sejam aceites como instrumentos incontestáveis da ordem jurídica.

Isto significa que um ato administrativo, a partir do momento em que não observe determinado requisito de validade, será inválido, podendo, por isso, ser contestado perante a própria Administração e perante os tribunais. A invalidade dos atos administrativos está regulada, fundamentalmente, nos artigos 161º-163º do CPA e decompõe-se em duas modalidades essenciais: a nulidade e a anulabilidade.


·        Principais diferenças entre nulidade e anulabilidade

Por um lado, um ato nulo é ineficaz, não produzindo qualquer efeito ab initio e é insanável, quer pelo decurso do tempo, quer por ratificação, reforma ou conversão. No entanto, o art. 162º, nº 3, do CPA admite “a possibilidade de atribuição de efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de atos nulos, de harmonia com os princípios…”. Como tem sido indicado na doutrina, nomeadamente pelo Sr. Professor André Salgado de Matos, este preceito constitui uma das pouquíssimas válvulas de escape à sua rigidez genética. Neste sentido, com a revisão, ao CPA, de 2015, foi retirada a consideração do decurso do tempo do centro da ponderação de princípios a efetuar, o que constituiu uma alteração muito subtil a este preceito, para que se decida se devem, ou não, ser atribuídos efeitos jurídicos a situações constituídas ao abrigo de atos nulos. [1]

Pode ser impugnado a todo o tempo e perante qualquer tribunal. De facto, “o ato nulo não tem de ser impugnado perante os tribunais administrativos, embora possa haver interesse em pedir a declaração judicial da sua nulidade, para tornar claro, perante a Administração e eventuais terceiros, que não podem ser extraídas quaisquer consequências do ato nulo” [2]. Quanto ao facto de poder ser impugnado a todo o tempo, cumpre ter em atenção, porém, que há casos em que lei especial possa sujeitar essa invocação a prazos, como, aliás, resulta da ressalva introduzida no inciso inicial do art. 162º, nº 2, mas tal só ocorre a título excecional. Do mesmo modo, a nulidade pode ser conhecida a todo o tempo por qualquer órgão administrativo, tendo o seu reconhecimento natureza declarativa.

Em contrapartida, os atos anuláveis são eficazes, produzindo todos os seus efeitos até ao momento em que ocorra a sua anulação ou suspensão. São suscetíveis de sanação pelo decurso do tempo, pela verificação de um qualquer facto jurídico stricto sensu ou pela prática de determinados atos tendentes a fazer desaparecer a desconformidade de que padecem. O seu reconhecimento tem natureza constitutiva. A anulabilidade pode ser invocada por qualquer interessado que possa retirar uma vantagem da anulação. Os atos administrativos anuláveis podem ser impugnados perante a própria Administração, ou perante o tribunal administrativo competente, dentro do prazo legal. Por regra, ao fim de um ano, o ato anulável deixa de poder ser impugnado (art. 58º, nº 2, do CPTA).

A invalidade regra de um ato administrativo, proferido em execução de normas legais organicamente inconstitucionais, é a anulabilidade (art. 163º, nº 1). O legislador optou por esta solução, sobretudo por considerações de oportunidade, que se prendem com a necessidade de dotar os atos administrativos de um mínimo de estabilidade, que proteja a confiança da pluralidade de interessados que neles podem estar envolvidos. Esta regra é, por isso, justificada, no essencial, por razões de segurança jurídica.

Sem prejuízo do disposto em vasta legislação especial, a nulidade dos atos administrativos constitui a exceção à regra, só existindo, nos termos do art. 161º, nº 1, do CPA, nos casos para os quais “a lei comine expressamente essa forma de invalidade”.


·        Invalidade dos atos administrativos antes e depois da revisão de 2015

Note-se que, antes da revisão de 2015, o anterior art. 133º, nº 1, do CPA fulminava com a nulidade os atos administrativos aos quais faltasse qualquer dos elementos essenciais. Este critério geral de nulidade do nº 1 do art. 133º era puramente estrutural ou, como indica o Sr. Professor Mário Aroso Almeida, fazia apelo a um conceito de nulidade por natureza, com base, ao que parece, no entendimento de que todos os elementos da estrutura do ato administrativo (autor, destinatários, objeto, conteúdo, forma, formalidades, fim e motivos) seriam “essenciais”. Deste modo, a falta de qualquer um deles deveria ser causa de nulidade do ato.

No entanto, o Sr. Professor Mário Aroso de Almeida afirma que a previsão deste artigo afigurava-se infeliz, na medida em que não teria qualquer sentido qualificar todos os elementos da estrutura do ato administrativo como “essenciais”. Tal entendimento conduziria, inevitavelmente, a diluir os requisitos de existência do ato administrativo nos requisitos da sua validade, ou seja, reconduzir-se-iam a um regime de mera invalidade as situações de pura inexistência de ato administrativo, o que, a seu ver, lhe parecia indefensável. Não se poderia sustentar, nessas situações, que pudéssemos estar perante um ato que, ao mesmo tempo, é inexistente e é nulo.

Com a revisão de 2015, o legislador do CPA optou por eliminar, no novo art. 161º, a referência à possibilidade de existência de situações de nulidade por falta de elementos essenciais, o que, na opinião de vários Professores, parece positivo. Afasta-se, assim uma ambiguidade indesejável, no plano teórico, e à qual a prática jurisprudencial não tinha, pelo seu lado, reconhecido efetivo sentido útil. Assim, o art. 161º, ao consagrar um regime de taxatividade legal das causas de nulidade dos atos administrativos, não deixa espaço para situações de nulidade por natureza. 


·        Posição crítica do regente sobre este tema:

O Sr. Professor Vasco Pereira da Silva considera que o elenco fixado no art. 161º, nº 2 é, por um lado, bastante amplo e, por outro lado, além do art. 161º, nº 2 referir que são nulos “designadamente”, deve admitir-se que alguns dos seus preceitos contêm cláusulas de grande abertura. É o caso da alínea c) do art. 161º, nº 2 (“os atos cujo objeto ou conteúdo seja impossível, ininteligível ou constitua ou seja determinado pela prática de um crime”) e da alínea d) do mesmo artigo, que ao cominar a nulidade para “os atos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental” abre a possibilidade da violação dos direitos fundamentais – direitos que, aliás, não são taxativos – ser sempre sancionada com a nulidade. Por conseguinte, dificilmente pode ser interpretado como constituindo a exceção. Ou seja, não há nenhum critério fechado de tipicidade de nulidade, tal como não há uma preferência pela anulabilidade.


·        Tomada de posição

Apesar de ser evidente que o elenco fixado no art. 161º, nº 2 é, de facto, bastante amplo, considero que, salvo melhor opinião, não é muito conveniente dizer que os seus preceitos contêm cláusulas de grande abertura, pois todas elas são facilmente densificadas, com o apoio de doutrina e jurisprudência. Assim, começando pela análise da alínea d) do art. 161º, nº 2, cumpre dizer que o “conteúdo essencial de um direito fundamental”, previsto neste artigo, se reporta ao núcleo de um direito, liberdade e garantia constitucionalmente consagrados, ou a um direito análogo, ou à ofensa chocante e grave de um princípio estruturante do Estado de Direito, ou de outro direito fundamental suficientemente densificado na lei ordinária. Assim, a violação do “conteúdo essencial de um direito fundamental” só gera a nulidade do ato administrativo quando, em consequência do ato administrativo em causa, seja afetado o mínimo sem o qual esse direito não pode subsistir enquanto tal.

A título meramente exemplificativo, irei também densificar as alíneas a) e e), para melhor justificar a minha posição. Neste sentido, a alínea a) diz-nos que são nulos “os atos viciados de usurpação de poder”, o que significa que a Administração Pública não pode praticar um ato de natureza legislativa ou jurisdicional. Por exemplo, a Administração não pode assumir o poder de definir, por ato administrativo, matéria que só um tribunal pode dirimir através de sentença. Tendo em conta que configura uma violação do princípio da separação de poderes, corresponde à mais grave das situações de inobservância das regras que definem o quadro de atribuições e competências administrativas e, por isso, gera a nulidade do ato administrativo.

Por fim, a alínea e) diz-nos que são nulos “os atos praticados com desvio de poder para fins de interesse privado”, o que significa que não é permitido o exercício de poderes discricionários por motivo determinante que não condiga com o fim visado pelo legislador com a atribuição de tais poderes. Por exemplo, a Administração, devendo escolher entre várias soluções, não pode fazer a sua escolha em função de razões pessoais, ou mesmo em razões de interesse público que, porém, não tenham relevância para aquele tipo de ato. Note-se, no entanto, que o ato não é inválido pelo simples facto de motivos viciados terem influído na decisão, mas apenas se se demonstrar que os motivos viciados foram determinantes para a opção que foi tomada.


·        Bibliografia

Mário Aroso de Almeida, “Teoria Geral do Direito Administrativo”: o novo regime do Código do Procedimento Administrativo, 2015, 2ª edição, Almedina

Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, “Direito Administrativo Geral, Tomo III, Atividade administrativa

Aulas teóricas do Sr. Professor Vasco Pereira da Silva



Beatriz Sofia Gaspar Simões, nº 64600, TB, subturma 14



[1] Fórmula utilizada no art. 134º, nº 3, que correspondia, na redação do CPA anterior à revisão de 2015, ao atual art. 162º, nº 3: “O disposto nos números anteriores não prejudica a possibilidade de atribuição de certos efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de atos nulos, por força do simples decurso do tempo, de harmonia com os princípios gerais de direito”.

[2] Mário Aroso de Almeida, “Teoria Geral do Direito Administrativo”: o novo regime do Código de Procedimento Administrativo, 2015, 2ª edição, Almedina, pp. 267

CONCLUSÃO: 29/05/2022

PROCESSO: 29522/FDUL

Sentença


A Faculdade de Arquitetura interpôs, neste Tribunal, o presente recurso contencioso pedindo a nulidade do despacho do ato praticado pelo ex-Ministro das Finanças, Manuel Cordeiro, imputando-lhe a violação do dever de audiência prévia e de fundamentação das decisões e dos princípios da imparcialidade, igualdade, justiça e razoabilidade.


ALEGAÇÕES

  • A Faculdade de Arquitetura alega a violação do dever de audiência dos interessados (artigos 121º e 124º do CPA), que levará à nulidade da decisão do Ministro; a violação do dever de fundamentação, por falta dos requisitos impostos pelo artigo 153º nº1; a violação do princípio da imparcialidade por Manuel Cordeiro se encontrar em situação de suspeição, sendo que não houve pedido de dispensa por parte deste, o “(...) ato administrativo em causa é, por identidade de razão, ilegal, ferido de anulabilidade”; a violação do princípio da igualdade, da justiça e razoabilidade, devido ao tratamento desigual de duas situações consideradas iguais “Tanto o CIVC como o CIEEP foram aprovados nos atos anteriores, pois os seus objetivos e as suas características entraram de forma prometedora nos parâmetros europeus, (...) o CIEE teve apoios inferiores”; 

  • Os Advogados de defesa do ex Ministro das Finanças, Manuel Cordeiro, alegam que não houve uma violação do princípio da imparcialidade, por considerarem que apenas se poderia aplicar o artigo 69º do CPA, o qual tem caráter taxativo; que não houve uma violação do do dever de fundamentação, alegando que houve uma fundamentação sucinta, respeitando o artigo 153º nº1; e que não ocorreu uma violação do dever de audiência prévia, afirmando que havia dispensa da mesma ao abrigo do artigo 124º/1, alínea d);

  • Os Advogados de defesa do ISER alegam que a atuação do ex-Ministro das Finanças não integra qualquer impedimento do nº 1 do artigo 69ºCPA, considerando a possibilidade de “(...) ser aplicado ao caso o número 2º do mesmo artigo, que exclui como impedimentos atos de mero expediente”; não houve violação do princípio da igualdade pois trata-se de um ato certificatório; alegam que não houve violação do dever de audiência prévia, tendo sido este cumprido quando ouvidos os 22 projetos candidatos; não ocorreu uma violação do dever de fundamentação, tendo o ato sido fundamentado pelo despacho que confirma a atribuição da subvenção europeia. 

1.FUNDAMENTAÇÃO


1. De facto


Julgam-se provados os seguintes factos: 


  • O despacho favorável foi emitido pelo então Ministro das Finanças Manuel Cordeiro e, de acordo com a Lei nº 52/2019, artigo 6º nº2 alínea c), constitui uma exceção ao exercício de funções em regime de exclusividade as “(...) atividades de docência e de investigação no ensino superior, nos termos previstos nos estatutos de cada cargo, bem como nos estatutos das carreiras docentes do ensino superior”. Porém, o Estatuto da Carreira Docente Universitária (Decreto-lei nº 205/2009 de 31 de Agosto) no seu artigo 73º nº2 determina que “O tempo de serviço prestado nas situações constantes do número anterior suspende a duração dos vínculos contratuais e, a pedido do interessado, outras obrigações que sejam previstas nos regulamentos da respectiva instituição de ensino superior.”. 

  • Preterição da fase procedimental da audiência dos interessados;

  • Consta da fundamentação do ato o seguinte: «necessidade da subvenção para não se perder o apoio europeu»;

  • Foram apresentadas a este Tribunal as seguintes provas documentais: 

  1. Existência de um parecer jurídico apresentado a este Tribunal pela Faculdade de Arquitetura, dirigido ao Dr. Manuel Cordeiro, para haver um esclarecimento jurídico quanto à possibilidade de existir um impedimento ou suspeição adstrita a uma eventual decisão relativa ao co-financiamento dos projetos apresentados pelo Ministro da Ciência e do Ensino Superior, nos quais se inclui o CIVC, pertencente ao ISER. O Departamento Jurídico do Ministério das Finanças, dirigido pela Dr. Rita Purcinelli, a quem foi solicitado a emissão do parecer, concluiu que o Sr. Ministro deveria pedir dispensa de intervir no procedimento, em razão do artigo 75º do CPA.

  2. Proposta de celebração de contrato-programa plurianual entregue pelo ISER. Independentemente desta prova documental, considera este Tribunal que o despacho favorável de atribuição do valor de 8 milhões de euros foi emitido pelo então Ministro das Finanças, Manuel Cordeiro, tal como resulta dos factos do caso e confirmado por prova testemunhal da Dra. Rita Purcinelli (Diretora do Departamento Jurídico do Ministério das Finanças). 


2. De Direito


  1. Dever de Audiência Prévia dos interessados


No procedimento administrativo necessário para a produção da decisão, houve uma preterição total do direito à audiência, já que a Faculdade de Arquitetura não foi em nenhuma fase chamada a ser ouvida.

A audiência dos interessados (art.º 121º a 125º CPA) é uma das mais importantes faces de dois importantes princípios gerais formalizados no CPA: o princípio da colaboração da Administração com os particulares, vertido no artigo 11º nº1, e o princípio da participação, explanado no artigo 12º. A audiência prévia dos interessados é a fase do procedimento no qual é assegurado aos interessados o direito de participarem na formação das decisões que lhes digam respeito. Inclui, em síntese, a notificação dos interessados antes de ser tomada a decisão final sobre o sentido provável desta, de modo que, estes possam pronunciar-se sobre todas as questões com interesse para a decisão, em matéria de facto e de direito, bem como requerer diligências complementares e juntar documentos (art.º 121º CPA); ao que se segue a ponderação, pelo instrutor, dos argumentos e razões apresentadas pelos interessados em defesa dos seus pontos de vista. A aludida notificação fornece o projeto da decisão e demais elementos necessários para que os interessados possam conhecer todos os aspetos relevantes para a decisão, em matéria de facto e de direito, indicando também as horas e o local onde o processo pode ser consultado (Art. 122º CPA).

A comunicação aos interessados do sentido provável da decisão deve ser acompanhada de uma adequada fundamentação. 

Por princípio, a formalidade de audiência prévia dos interessados deve ser observada. Existem, no entanto, algumas situações em que o diretor do procedimento pode não proceder à audiência dos interessados; se tal ocorrer, deverão as razões que no caso concreto fundamentaram a dispensa da audiência ser expressa ou autonomamente indicadas na decisão final (art.º 124º nº2 e 126º). A dispensa em causa é legítima nos casos previstos nas hipóteses do art.º 124º nº1. O CPA prevê duas formas de os interessados serem ouvidos no procedimento antes de ser tomada a decisão final: a audiência escrita e a audiência oral. Compete ao diretor do procedimento decidir, em cada caso, se a audiência prévia dos interessados deve ser escrita ou oral (art.º 122º CPA).

A falta de audiência prévia dos interessados, nos casos em que seja obrigatória por lei, constitui obviamente uma ilegalidade. Mais concretamente, traduz-se num vício de forma, por preterição de uma formalidade essencial. O vício será gerador de nulidade se o direito à audiência prévia for concebido como um direito fundamental (art.161º nº2 al. f) CRP); se o não for, a falta de audiência produzirá mera anulabilidade (art.163/1 CPA). O Professor Diogo Freitas do Amaral tem perfilhado a segunda posição. O Professor considera que o direito subjetivo público de audiência prévia dos interessados, sendo um direito de grande importância no sistema de proteção dos particulares face à Administração Pública, não é um direito incluído no elenco dos direitos fundamentais, que são os direitos mais diretamente ligados à proteção da dignidade da pessoa humana. A jurisprudência do STA tem seguido esta orientação. A produção da mera anulabilidade (art.º 163 do CPA), é a posição maioritária em Portugal, sendo defendida também pelo Professor Pedro Manchete, que considera que, sendo esta a sanção que a ordem jurídica portuguesa define para a falta de audiência do particular num inquérito disciplinar, não há razão que justifique para que no caso do procedimento administrativo uma sanção mais elevada.

No entanto, os Professores Vasco Pereira da Silva, Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos defendem a nulidade do ato por falta de audiência. O Professor Vasco Pereira da Silva fundamenta a sua posição, considerando que o direito de audiência constitui um direito fundamental de terceira geração (art.161/2 al. d) do CPA). Já o Professor Marcelo Rebelo de Sousa defende a nulidade, mas com base na falta dos elementos essenciais do ato administrativo. 

Seguimos então a posição que considera a audiência prévia dos interessados como um direito fundamental, uma vez que o elenco dos direitos fundamentais apresentado na CRP não é taxativo e, tendo em conta a relevância do direito em causa. Consideramos  o ato nulo, (não havendo uma situação de dispensa) assim como entende a Faculdade de Arquitetura.  

  1. Dever de Fundamentação

Uma das formalidades essenciais alicerçadas ao ato administrativo é a fundamentação do mesmo, nos casos designados no art. 152º nº1 do CPA. Este dever de fundamentação também se encontra parcialmente consagrado no art. 268º nº3 da CRP. Este dever desempenha importantes funções quanto ao controlo da Administração que, forçada a explicar o porquê das suas decisões, vai ser obrigada a ponderar de forma mais cautelosa. Também funciona enquanto garante de uma maior proteção e confiança dos particulares face à Administração, podendo então fornecer-lhes uma justificação dos atos praticados.

Os requisitos para esta estar reunida são então: a fundamentação deve ser expressa e clara; dispõe ainda o artigo 153.º nº1 do CPA que, materialmente, deve a mesma contemplar fundamentos do âmbito factual e do âmbito jurídico da decisão. A exigência de fundamentação tem que contemplar os fundamentos factuais e jurídicos, não significa que dela tenham de constar os artigos aplicados na atuação administrativa. O critério a ter em conta pela Administração, no que toca à fundamentação, é a capacidade do particular – em concreto – a quem afeta o ato administrativo compreender quais são os motivos que levaram à prática do ato.

Em Portugal, alguns autores defendem a existência de um direito fundamental à fundamentação. Defende-o o Professor Sérvulo Correia, para quem «é materialmente inconstitucional derrogar o direito dos particulares à fundamentação». No mesmo sentido, entende o Professor Guilherme da Fonseca que devem ser garantidos «os direitos do cidadão perante a Administração Pública para o processo administrativo gracioso, entre eles o dever de fundamentação». Porém, o entendimento supracitado não é unânime (nem dominante). Na visão do Professor Vieira de Andrade – que passamos a explicar – existe na ordem jurídica portuguesa um direito crucial à fundamentação. Segundo o Professor, para que houvesse uma receção material de um direito para a Constituição a partir de uma regra procedimental, teriam de se verificar duas condições: a regra teria de ser condição necessária à garantia de um  direito fundamental; e deveria haver um consenso alargado e sedimentado relativamente à força constitucional da norma. Ora, o Professor recusa que o instituto da fundamentação dos atos administrativos venha tutelar algum direito fundamental. Por fim, defende que a proteção conferida aos direitos fundamentais seria excessiva para o caso da fundamentação dos atos administrativos, sendo-lhe suficiente o regime positivamente consagrado. Os Professores Gomes Canotilho e Vital Moreira consideram que há, no dever de fundamentação dos atos administrativos, uma dimensão garantística dos direitos fundamentais. Não obstante, o dever de fundamentação integraria, assim, a estrutura complexa de proteção dos direitos fundamentais, mas não passaria a corresponder a um direito fundamental autônomo. Outros autores incontornáveis do Direito Administrativo – como o Prof. Freitas do Amaral – não se debruçam sobre a questão de reconhecer natureza jusfundamental ao instituto da fundamentação expressa do ato administrativo.

Perfilhamos da posição do Professor Sérvulo Correia. Consideramos que é um direito fundamental, cabendo no art 161º alínea d) do CPA , sendo então o ato sujeito a nulidade. De acordo com as alegações da parte que defende o Doutor Manuel Cordeiro, que afirmam que esta justificação do ato seria suficiente  e explicativa. A fundamentação da decisão deve respeitar os requisitos apresentados no artigo 153º nº1 do CPA. Ora, esta fundamentação é claramente insuficiente e obscura, o que o nº2 do mesmo preceito iguala à falta de fundamentação. Assim, a falta de fundamentação leva a uma clara violação deste dever fundamental. Esta violação não permite aos projetos concorrentes saber o porquê da eleição daquele projeto em concreto, o que prejudica outro direito fundamental - o direito de acesso à justiça. 

  1. Princípio da Imparcialidade 

Previsto no artigo 9º do CPA, o princípio da imparcialidade prevê que a Administração deve tomar decisões determinadas, exclusivamente com base em critérios objetivos de interesse público, adequados ao cumprimento das suas funções específicas, não se tolerando que tais critérios sejam substituídos ou distorcidos por influência de interesses alheios à função. Ou seja, os órgãos administrativos devem atuar de forma isenta e equidistante relativamente aos interesses em jogo.

A afirmação do princípio da imparcialidade não contradiz a parcialidade enquanto característica inerente da atuação administrativa – a administração é necessariamente parcial na prossecução do interesse público, mas é também necessariamente imparcial na ponderação dos interesses públicos e privados sobre os quais a sua atuação repercute.

O princípio da imparcialidade tem uma dimensão negativa – ideia de que os titulares de órgãos e os agentes da Administração estão impedidos de intervir em procedimentos, atos ou contratos que digam respeito a questões do seu interesse pessoal, da sua família, etc., a fim de que não possa suspeitar-se da isenção ou retidão da sua conduta (dever de não intervir; artigos 69º a 76º do CPA) – e uma dimensão positiva – o dever, por parte da Administração, de ponderar todos os interesses públicos secundários e os interesses privados legítimos, equacionáveis para o efeito de certa decisão, antes da sua adoção.

O dever de não interferir distingue-se, por sua vez, em dois tipos de situações: as situações de impedimento – em que é obrigatório por lei a substituição do órgão ou agente administrativo normalmente competente por outro, que tomará a decisão no seu lugar – e as situações de suspeição (impedimento relativo) – a substituição não é automaticamente obrigatória a substituição é apenas possível, tendo de ser requerida pelo próprio órgão ou agente, que pede escusa de participar naquele procedimento, ou pelo particular que opõe uma suspeição àquele órgão e pede a sua substituição por outro – sendo as primeiras as mais graves.

A isto, os Professores Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos chamam as garantias preventivas de imparcialidade – “(…) mecanismos tendentes a assegurar que os titulares de órgãos e agentes administrativos não influenciarão as decisões tomadas em procedimentos nos quais seria especialmente de recear que se comportassem de modo parcial.”.

Concorda-se com a defesa de Manuel Cordeiro quando diz que este caso não integra nenhuma das situações de impedimento previstas no artigo 69º. Porém, é necessário atender também à possibilidade de existir uma situação de suspeição, artigo 73º.

As situações de suspeição, ao contrário daquilo que resulta para os casos de impedimento, não apresentam uma enumeração taxativa das situações que a originam, tendo a lei recorrido a uma cláusula geral. Esta cláusula geral atribui uma certa discricionariedade ao utilizar o conceito indeterminado «duvidar seriamente», o qual não podendo ser preenchido por recurso a uma interpretação jurídica ou por recurso à doutrina e jurisprudência, apresenta uma verdadeira margem de discricionariedade que apenas pode ser preenchida atendendo ao caso concreto. A mera verificação de uma das circunstâncias previstas (artigo 73º CPA) não implica que ocorra por força uma situação de suspeição, dependendo a sua existência essencialmente da concretização da cláusula geral, mediante a valoração dos conceitos indeterminados nela usados. Verificando-se fundamentadamente a concretização desta cláusula geral, o titular do órgão ou agente deve formular um pedido de dispensa nos termos do artigo 74º nº1, podendo também qualquer interessado formular este pedido (nº3). Até à decisão da questão de suspeição, o titular do órgão ou agente deve continuar a intervir no procedimento como se nada se passasse. Contudo, se esta não for proferida ou se a decisão for negativa, isto não prejudica a invocação da anulabilidade dos atos praticados “(…) quando do conjunto das circunstâncias do caso concreto resulte a razoabilidade de dúvida séria sobre a imparcialidade da atuação do órgão, revelada na direção do procedimento, na prática de atos preparatórios relevantes para o sentido da decisão ou na própria tomada da decisão.” (artigo 76º nº4).

Resulta dos factos julgados provados por este Tribunal que Manuel Cordeiro, ex Ministro das Finanças, no momento em que proferiu a decisão de atribuição da subvenção, apenas ao ISER, encontrava-se suspenso do seu cargo docente. Contudo, este Tribunal considera que este facto não é suficiente para afastar o possível conflito de interesses gerado pelo facto de Manuel Cordeiro apenas ter as suas funções no corpo docente do ISER suspensas. Logo, o então Ministro das Finanças encontrava-se em situação de suspeição, tal como é referido no parecer do Departamento Jurídico do Ministério das Finanças. 

De ressalvar que os despachos de mero expediente são aqueles que apenas têm como objetivo regular ou disciplinar o andamento ou a tramitação processual e que não importam decisão ou julgamento, denegação, reconhecimento ou aceitação de qualquer direito, ou seja, que não decide qualquer questão de forma ou de fundo. Com base nisto, a alegação do ISER quanto à possibilidade de se tratar de um ato que se integra na alínea a) do artigo 69º nº2 não nos parece sustentável, pois não é possível definir a atuação por parte do Sr. Ministro das Finanças, um órgão singular decisório (despacho), como um mero ato de expediente, designadamente um ato certificativo. Ao aprovar a subvenção nacional apenas para um dos vinte e dois projetos apresentados pelo Ministério da Ciência e Ensino Superior não se pode concluir que este ato foi apenas “(…) um despacho favorável de confirmação daquilo que foi decidido no Ministério já referido, ou seja, não houve qualquer análise do mérito da causa por parte do ex Ministro das Finanças.” 

  1. Princípio da Igualdade 

Segundo o disposto no artigo 6º do CPA, “Nas suas relações com os particulares, a Administração Pública deve reger-se pelo princípio da igualdade, não podendo privilegiar, beneficiar, prejudicar, privar de qualquer direito ou isentar de qualquer dever ninguém em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.”

O Princípio da igualdade  encontra-se também constitucionalmente consagrado no artigo 13º e no 266º/2 para a Administração Pública. Este Princípio consiste essencialmente na obrigação de tratar de forma igual aquilo que é igual e diferente aquilo que é diferente, em termos administrativos falamos, portanto, de proibição de arbítrio e de não discriminação. No caso de se tratar de duas situações iguais, impõe-se à AP o dever de não introduzir desigualdade entre estas duas situações iguais. Porém, no caso de situações iguais serem tratadas de forma diferente há, neste caso, um dever de as igualar. Já se se tratar de duas situações diferentes é exigido um tratamento equivalente à diferença. Logo, se estas duas situações diferentes estiverem a ser tratadas de forma igual, há o dever de as diferenciar.  

Neste caso concreto, ao que tudo indica estaríamos perante situações iguais – 22 projetos que foram apresentados pelo Ministério da Ciência e Ensino Superior como suscetíveis de receber subvenções, sendo que apenas uma destas instituições recebeu a subvenção nacional. Desta forma, à luz dos factos e argumentos apresentados e, uma vez que para realização do fim tido em vista (a necessidade de não perder o apoio europeu) não foi razoável proceder à distinção entre CIVC e CIEEP, à luz dos valores dominantes do ordenamento jurídico, o Tribunal considera procedente os argumentos de violação dos princípios da igualdade e justiça. Assim, caracterizando este princípio como sendo, indiscutivelmente, um direito fundamental remete-se para a nulidade do ato, 161º nº2 alínea d) do CPA.

O Princípio da Igualdade está intimamente ligado ao Princípio da Justiça e Razoabilidade (artigo 8º CPA),  sublinhando a importância da justiça e da igualdade na atuação da Administração Pública.

O princípio da justiça, consagrado no artigo 266º nº2 da CRP e no artigo 8º do CPA, além de ser um princípio que aglutina vários subprincípios que encontram tradução autónoma noutros preceitos constitucionais e legais, é também um princípio próprio, isto é, um princípio diretamente constitutivo de regras jurídicas.  Enquanto princípio garantidor de uma determinada ideia de direito, o princípio da justiça foi, assim, a fonte a que a doutrina, a jurisprudência e o legislador foram buscar as bases de densificação de outros princípios.  

O princípio da justiça tem vindo a perder relevância e só se pode considerar violado nas situações cuja qualificação como injustas é suscetível de alcançar um consenso intersubjetivo – situações de injustiça manifesta e ostensiva

Será injusta stricto sensu, a decisão do então Ministro das Finanças, Manuel Cordeiro, que favoreceu, sem fundamentação suficiente, o CIVC perante todos os outros 21 projetos também considerados aptos pelo Ministério da Ciência e Ensino Superior a receber o financiamento nacional.

Também no artigo 8º do CPA se encontra o princípio da razoabilidade. Acrescente-se que, tal como resulta deste preceito, não é toda a irrazoabilidade que releva, mas sim a irrazoabilidade manifesta. Esta incompatibilidade deve-se prender também com uma “(…) certa ideia de Direito, nomeadamente em matéria de interpretação das normas jurídicas e das valorações próprias do exercício da função administrativa”. 

  1. Princípio da Proporcionalidade

Nos termos do número 1 do artigo 7º do Código do Procedimento Administrativo, “na prossecução do interesse público, a Administração Pública deve adotar os comportamentos adequados aos fins prosseguidos”. Cumpre frisar que o princípio da proporcionalidade tem, igualmente, tutela constitucional no artigo 266º, nº2, como padrão de toda a atividade administrativa.

Posto isto, o princípio da proporcionalidade, nas palavras do Professor Diogo Freitas do Amaral, é o princípio segundo o qual a limitação de bens ou interesses privados por atos dos poderes públicos deve ser adequada e necessária aos fins concretos que tais atos prosseguem, bem como tolerável quando confrontada com aqueles fins.

A definição supracitada evidencia as três dimensões do princípio da proporcionalidade que devem ser cumulativamente preenchidas: Adequação - proíbe a adoção de condutas administrativas inaptas para a prossecução do fim que a norma vise; Necessidade (ou proibição do excesso) - para além de idónea para o fim que se propõe alcançar, a medida administrativa deve ser, dentro do universo das medidas abstratamente idóneas, aquela que, em concreto, lese em menor medida os direitos e interesses dos particulares; Equilíbrio (ou proporcionalidade em sentido estrito) – exige uma ponderação entre os benefícios e os custos que aquela medida administrativa acarreta, exigindo que os primeiros sejam superiores aos últimos. 

A preterição de qualquer uma das três dimensões envolve a preterição global da proporcionalidade. 

No que diz respeito à averiguação se a decisão tomada pelo Sr. Dr. ex-Ministro das Finanças é adequada, de facto, podemos considerar que a adequação se encontra verificada, uma vez que, realmente, a criação do CIVC, tal como todos os restantes projetos, tinha como principal objetivo a “subvenção para não se perder os fundos europeus”. Pelo que se revela causalmente ajustada ao fim que se propõe atingir.

No que toca à necessidade, para além de idónea para o fim que se propõe alcançar, a criação do CIVC deve ser, dentro de um universo de medidas abstratamente idóneas, aquela que, em concreto, lese em menor medida os direitos e interesses dos particulares. Aqui temos, de facto, que realizar uma comparação, entre a atribuição da subvenção e outras possíveis medidas. Este requisito também se encontra preenchido, pois a atribuição de uma subvenção não prejudica quaisquer direitos e interesses da entidade a que esta foi atribuída.

Por sua vez, a vertente do equilíbrio (ou da proporcionalidade stricto sensu) exige que os benefícios que se espera alcançar com uma medida administrativa adequada e necessária suplantam, à luz de certos parâmetros materiais, os custos que ela por certo acarretará. Neste caso, o benefício seria o financiamento nacional do CIVC que se opõe aos custos, os quais refletem a preterição de atribuição de uma subvenção às outras 21 instituições. Assim sendo, os custos claramente se sobrepõem aos benefícios.  

Sendo a medida desproporcional, encontra-se ferida de anulabilidade nos termos do artigo 163, nº 1, do Código do Procedimento Administrativo.

DECISÃO

Após o término da simulação de julgamento no passado dia 20 de maio de 2022, a presente decisão foi elaborada tendo em conta toda a conjuntura de testemunhos, alegações, documentos e provas entregues pelas partes integrantes da ação. 

Nestes termos, e com base e fundamento no supracitado, entendemos que a Faculdade de Arquitetura, autora da ação demonstrou, de facto,  razão perante o Tribunal, da quebra por parte do Sr. Dr. Manuel Cordeiro de princípios basilares da Administração Pública, ao agir com parcialidade, desproporcionalidade, desigualdade e irrazoabilidade. Inclusivamente, não se verificou audiência dos interessados, nem a devida fundamentação do ato administrativo. 

Posto isto, o Douto Tribunal decide a favor da Faculdade de Arquitetura, julgando-se improcedentes e infundamentados os argumentos e provas invocados pela Administração Pública.


Os Juízes,
Ana Laura Carmo;
Carolina Farinha;
Francisca Matos;
Guilherme Fernandes;
Iara Sequeira.